O fenômeno da oxidação lipídica
A oxidação lipídica é constituída de três fases principais: a iniciação, a propagação e a terminação. As reações de iniciação da oxidação de gorduras podem ser promovidas por dois grupos de fatores:
1) pelo impacto ou absorção de energia e
2) por reações redox.
O primeiro grupo de mecanismos está relacionado a condições em que os alimentos ou o organismo humano estão sujeitos a fontes de elevada energia ou radiação ionizante (em alimentos: irradiação; em sistemas biológicos: exposição ocupacional ou acidental); radiação ultravioleta (em alimentos: usada em sanitização; no homem: exposição à luz solar e outras fontes); microondas (em alimentos: cozimento; em sistemas biológicos: exposição acidental ou ocupacional); luz visível com fotossensibilizadores (como as tetraciclinas na fotoperoxidação); e degradação térmica de material orgânico (nos alimentos é a cocção; no homem são as queimaduras decorrentes da exposição). No segundo grupo ocorrem reações de redox catalisadas por metais de transição (reações de Fenton/Haber- -Weiss) (KUBOW, 1992) ou por enzimas, agrupadas em organelas ou isoladas (RHEE, 1988; DONELLY & ROBINSON, 1995). Tais fatores, capazes de romper a barreira eletroquímica entre o oxigênio e as moléculas de ácido graxo insaturado constituem iniciadores da oxidação lipídica (KANNER, 1994).
Sabe-se que diversos fatores estão associados à ocorrência da oxidação lipídica em organismos vivos. Assim sendo, além dos fatores acima descritos, sabemos que o exercício físico, o estresse psicológico, a idade avançada, as infecções/inflamações, a hipertermia/hipotermia, a isquemia/reperfusão, a aterosclerose, o diabetes mellitus, a doença de Parkinson, a catarata, os metais pesados, os poluentes aéreos (ambiente de trabalho ou externo e fumaça de cigarro), os agrotóxicos (DDT, lindane, eldrin, paraquat), as drogas (álcool, anticancerígenos, sulfonamidas, tetraciclinas, etc.) e os alimentos (café, dietas ricas em gordura e pró-oxi-dantes e pobres em antioxidantes) constituem variáveis relacionadas à gênese da oxidação de gorduras (DUTHIE, 1993; KEHRER, 1993; HALLIWELL, 1994; MOLLER et al., 1996). Em relação à dieta, sabe-se que o consumo excessivo de alimentos com elevado teor de ácidos graxos poliinsaturados, a deficiência de vitamina E, carotenóides, selênio e outros antioxidantes e a desnutrição Kwashiorkor constituem fatores que favorecem a oxidação lipídica (SLATER ET AL., 1987; DUTHIE, 1993; PAPAS, 1996).
Nem todas as formas do oxigênio são promotoras da oxidação lipídica. Deste modo, a reação de adição de um elétron ao oxigênio molecular (O2) leva à formação do ânion superóxido (O2● -), espécie relativamente pouco reativa, produzida especialmente na cadeia respiratória mitocondrial e em outros sistemas transportadores de elétrons em biomembranas e, secundariamente, pela reação do O2 com tetrahidrofolatos, catecolaminas, açúcares, proteínas com grupamentos tiol, ácido ascórbico e outros agentes redutores, na presença de ferro livre, ou pela auto-oxidação da oximioglobina em metamioglobina (DUTHIE, 1993; HALLIWELL, 1994; KANNER, 1994). Nos processos inflamatórios, fagócitos ativados, fibroblastos e linfócitos também produzem O2●- via explosão respiratória. O ânion superóxido pode reagir com o óxido nítrico (NO●) para formar o peroxinitrito, potente oxidante de grupos -SH, que pode sofrer decomposição e originar o radical hidroxil (OH●), outro oxidante de elevado poder (HALLIWELL & CHIRICO, 1993; HALLIWELL, 1994). A reação H+ + O2● - pode originar o radical peroxil (HO2●), também extremamente oxidante (KANNER, 1994). Por fim, em mitocôndrias, microssomos e peroxissomos, da reação espontânea do O2● - com dois elétrons e dois átomos de hidrogênio, em presença da enzima superóxido-dismutase (SOD), ocorre a produção do peróxido de hidrogênio (H2O2) (ESTERBAUER, 1993). Ressalta-se que, embora o superóxido tenha baixa afinidade relativa por biomoléculas, ele dá origem a radicais de elevado potencial pró-oxidante.
O início da oxidação lipídica decorre então da interação de um iniciador com o oxigênio, que, uma vez ativado, pode reagir com o ácido graxo insaturado, ocorrendo a retirada de um átomo de hidrogênio do carbono metilênico adjacente (entre) à ligação dupla cis do ácido graxo insaturado, resultando na formação de radicais alílicos, segundo a reação (SEVANIAN & HOCHSTEIN, 1985; KANNER, 1994):
- Iniciação:
1. R-H + iniciador → R● (Radical carbonila)
Uma vez iniciada, a reação segue em cadeia e somente termina quando estiverem esgotadas as reservas de ácidos graxos insaturados e oxigênio (KIRK, 1984). Assim sendo, a fase de propagação, que ocorre em seguida, é caracterizada por diversas reações:
- Propagação:
2. R- + O2 → RO2- (Radical peroxila)
3. RO2- + R-H → R- + ROOH (Lipohidroperóxido)
4. 2ROOH → RO2- + RO- + H2O
As reações de propagação levam à formação de diversos peróxidos, que podem ser mensurados, servindo como índice de oxidação lipídica seja em alimentos (GRAY, 1978; WANG et al., 1995) ou mesmo no organismo humano (HALLIWELL & CHIRICO, 1993). Todavia, como os peróxidos são instáveis, sua mensuração é limitada às fases iniciais da oxidação lipídica, já que as reações continuam a ocorrer até a fase de terminação (SEVANIAN & HOCHSTEIN, 1985).
- Terminação:
5. RO2- + RO 2- → ROOR + O2
6. RO2- + R- → ROOR
7. R- + R- → RR (Dímeros ou polímeros)
Desta maneira, com o esgotamento dos substratos, as reações de propagação vão cessando e inicia-se a formação dos produtos finais. Deste modo, as reações de terminação têm como caracte-rística a formação de produtos finais estáveis ou não reativos. Os radicais alquoxila (RO2●), que participam de reações de decomposição, também podem sofrer epoxidação, polimerização (reação 5) ou reagir com outros grupos alquila (R●) (reação 6), reações químicas representativas da fase de terminação (KUBOW, 1992).
Os principais produtos finais da oxidação lipídica compreendem os derivados da decomposição de hidroperóxidos, como álcoois, aldeídos, cetonas, ésteres e outros hidrocarbonetos. Também são produzidas moléculas derivadas do rearranjo de monohidroperóxidos ou monohidroperóxidos oxidados subseqüentemente (grupo dos 5-peróxidos monocílicos, hidroperoxi-epidióxidos, di-hidroperó-xidos, endoperóxidos bicíclicos, etc.) e produtos de elevado peso molecular resultantes de reações de dimerização (principalmente) e polimerização (reação 7) de grupos C-C, éteres e peróxis unidos a peróxidos (ESTERBAUER, 1993). Aldeídos, cetonas, hidrocarbonetos, álcoois e furanas, produtos da oxidação lipídica, geralmente voláteis, também podem ser mensurados em óleos e gorduras, carnes, leite, cerveja, frutas (sucos), especiarias, essências oleosas e outros alimentos (GRAY, 1978; SEVANIAN & HOCHSTEIN, 1985; HWANG et al., 1990; GUILLÉN-SANS & GUZMÁN-CHOZAS, 1995). No ser humano, diversos aldeídos, especialmente o malonaldeído, podem ser mensurados e servem como indicadores da oxidação lipídica (SEVANIAN & HOCHSTEIN, 1985; KUBOW, 1992; LI & CHOW, 1994).
Assim como os ácidos graxos, o colesterol também sofre oxidação lipídica. Estas moléculas, caracterizadas pela presença de um núcleo ciclopentanoperhidrofenantreno, sofrem ataques de radicais de oxigênio que provocam a abstração de um átomo de hidrogênio do carbono 7 (adjacente à insaturação), dando origem a dois 7-hidroperóxidos epiméricos (DONNELLY & ROBINSON, 1995). Segundo TORRES (1988) tais epímeros, termicamente instáveis, acabam por originar 7- -hidroxicolesteróis e 7-cetocolesterol; todavia, epóxidos, colestenonas, colestenodióis e colestanodióis também são formados em carnes. Entretanto, os óxidos de colesterol constituem um problema em determinados alimentos, como ovos desidratados, leite em pó, batata frita à francesa e manteiga derretida indiana (o Ghee) (PARK & ADDIS, 1985; KUBOW, 1992; ZUNIN et al., 1995), ao passo que em outros alimentos estas substâncias ou são detectadas em pequenas concentrações, como nas salsichas, queijo parmesão, manteiga e charque (HIGLEY et al., 1986; TORRES, 1987; Fischer et al. citado por KUBOW, 1993), ou nem o são, como em salsicha de fígado, frango frito e hambúrguer cozido (PARK & ADDIS, 1985). O principal problema dos óxidos de colesterol está relacionado ao problema da aterosclerose. Deste modo, os óxidos de colesterol além de facilmente absorvidos pelo intestino, são capazes de inibir a síntese de colesterol, levando à morte das células, com rompimento da membrana celular e formação de infiltrados aterogênicos. Ademais, os óxidos de colesterol também são mutagênicos e cancerígenos (PEARSON et al., 1983; KUBOW, 1993).